sexta-feira, 30 de março de 2007

Ameixas



Acordei lá pelas oito horas da manhã. Chovia. Precisava ir ao mercado. Vesti-me, peguei a chaves do carro e sai. Cheguei ao mercado e peguei um carrinho. Caminhei pelos corredores quase vazios procurando o que precisava. Na parte de frutas e verduras, me deparei com lindas e vermelhas ameixas que pareciam estar suculentas. Peguei algumas. Pesei. Coloquei no carrinho. Ainda caminhei mais um pouco pensando em tudo e em nada ao mesmo tempo. Quando dei por mim, me encaminhava em direção ao caixa com um carrinho quase vazio, não fosse pelas ameixas. Paguei e voltei para casa. Coloquei as frutas na mesa e, quando me sentei para tomar café, percebi que não havia nem manteiga, nem leite, nem pão, nem chocolate em pó. E me lembrei que não gostava de ameixas.

by Tais Carla




segunda-feira, 19 de março de 2007

Sophie



Sophie era uma linda menininha de olhos negros e cabelos loiros. Olhava o mundo com um olhar sutil. Sentia a vida de um jeito peculiar. Experimentava cada momento a seu modo.
Foi lá pelos seus cinco anos que passou a acordar seus pais todas as noites. Passou a acreditar em fantasmas. Aqueles que assombravam as histórias que sua mãe contava antes de dormir. Sim, contava, porque depois do primeiro pesadelo, suas histórias ficaram restritas a contos de fadas.
A noite ia caindo, Sophie caminhava examinando minuciosamente cada parte da casa até o quarto. Não mais ia só. Olhava embaixo da cama. Deitava. E pedia para não deixá-la sozinha. Seus pais diziam e repetiam: “Fantasmas não existem”. Adormecia. Despertava ao menor barulho. Via-se só. Chorava e lá estavam seus pais. “Fantasmas não existem”, insistia a mãe. E toda noite era sempre assim.
Passou algum tempo e Sophie se acalmou. Não chorou mais. Parecia que finalmente havia entendido que fantasmas eram apenas truques de sua mente, que não passavam de pura fantasia. Assim pensavam seus pais.
Então por que Sophie ainda carregava um olhar de espanto? Por que ainda trazia a coberta até a ponta do nariz e espionava tudo com um enorme pavor?
Eles ainda estavam lá. “Nunca vão embora”. Era o que Sophie repetia insistentemente para si mesma. “Nunca vão embora”.
Aos olhos de todos que a conheciam, ela parecia ser a mesma garotinha quieta que andava pelo jardim como se estivesse explorando um universo somente seu.
Com o passar do tempo, Sophie se conformou. “Nunca vão embora”. Os fantasmas, fantasias ou não, tornaram-se um companhia constante. Faziam parte de seu universo. Ela não mais os encaravam como ameaças. Dizia: “Fantasmas-anjos”.
Sophie cochichava sozinha pelos cantos da casa. Assim acreditavam todos. Mas Sophie não estava só. Nunca esteve. “Vou brincar com eles” dizia Sophie. “Com quem?” questionava a mãe sem obter uma resposta, pois Sophie logo desaparecia. A mãe olhava pela janela da cozinha e avistava a pequena garota brincando por entre as flores do jardim. E estranhava o fato de não haver ali ninguém mais. “Coisa de criança”, pensava consigo mesma.
Sophie perguntava para a mãe: “Posso brincar com eles, mamãe?”. E a mãe, que encarava aquilo como brincadeira, respondia: “Desde que brinquem no jardim”. E de longe Sophie retrucava: “Quero brincar no jardim para sempre”. E todos os dias a cena se repetiu, exceto numa manhã de primavera. “Eles vieram me buscar e disse que eu tenho que ir”. A mãe dizia: “Eu deixo você ir, mas não saia do jardim”. E a garotinha respondia: “Quero brincar no jardim para sempre”
Na tarde daquele mesmo dia Sophie adoeceu. Veio o médico. Examinou. Não deu esperanças.
Sophie dormia quando ouviu sua mãe soluçar ao seu lado. Olhou-a nos olhos e sussurrou “Eles vieram me buscar e disse que eu tenho que ir”. “Eu deixo você ir, desde que não saia do jardim”, disse a mãe involuntariamente.
Dias depois Sophie morreu.
A mãe, que mal dormia, levantou-se da cama enquanto ainda o sol nascia. Sentou-se na escada da varanda e ficou olhando para o jardim que parecia mais belo do que nunca.
Veio o vento e com ele o doce cheiro das rosas que sua filha tanto admirava. Fechou os olhos. Era como se Sophie estivesse ali. Quando os abriu, algo fez seu coração acelerar. Não sabe se foi um truque de seus olhos, mas por um instante ela jurou ter visto Sophie correr por entre as flores, que balançavam. E ao longe ela ouviu uma voz de menina dizer: “Quero brincar no jardim para sempre com os fantasmas-anjos”.


by Tais Carla
(pintura: "delicate balance" Greg Olsen 1994)

sábado, 17 de março de 2007

Acostumar-se


Acostumar-se é simples. Acostumar-se é difícil. Acostumar-se não é para mim, é para os outros. Acostumar-se requer tempo. Às vezes nem percebo e já me acostumei. Às vezes quando me acostumo, acaba. Às vezes quando acaba, ainda não me acostumei.
Às vezes, penso que não vou me acostumar, e me acostumo. Às vezes, penso que vou me acostumar, mas não me acostumo. Acostumar-se faz parte da vida. Acostumar-se não depende apenas de mim. Eu me acostumo. Eu não me acostumo. Talvez. Talvez não.
by Tais Carla